Governo e Justiça querem regulamentar expropriação de terra com trabalho escravo
Representantes do governo federal, da Justiça do Trabalho e do
Ministério Público do Trabalho (MPT) defenderam a regulamentação do artigo 243
da Constituição Federal, segundo o qual as propriedades onde haja exploração de
trabalho escravo devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a
programas de habitação popular.
A regulamentação está prevista no projeto de lei (PL 1102/2023), de
autoria da deputada federal Reginete Bispo (PT-RS), que tramita apensado ao PL
5016/2005 e aguarda a criação de uma comissão especial para ser analisado. Mais
de 50 propostas tratam do mesmo assunto na Câmara.
As manifestações ocorreram durante audiência pública, realizada nesta
quinta-feira (22), na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial
da Câmara dos Deputados
Trabalho escravo deve fiscalizado e
punido
De acordo com a deputada, o PL 1102/23 visa "dispor sobre o confisco de
bens e a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a
exploração de trabalho em condições análogas a de escravo".
"O trabalho análogo à escravidão precisa ser visto com o olhar de
reparação, precisa ser fiscalizado e punido", disse a parlamentar gaúcha.
Para Reginete, "precisamos ampliar nossa consciência e saber que a
desigualdade é a fonte do trabalho escravo. Dito isto, a expropriação é o
mÃnimo. O PL 1102 é uma medida justa e necessária, além de um relevante
instrumento para a eliminação da impunidade que ainda reina em nosso Brasil".
Ela considera a medida "fundamental para desestimular e punir aqueles
que aproveitam a vulnerabilidade de trabalhadores e trabalhadoras,
submetendo-os a condições desumanas".
Resgates de trabalhadores dispararam desde 2020
A
coordenadora-geral de Combate ao Trabalho Escravo da Secretaria Nacional de
Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e
Cidadania, Andreia Minduca, afirmou que o número de trabalhadores submetidos a
essas condições está aumentando, conforme mostram dados da inspeção do
trabalho.
"Em
2020, nós tivemos 943 resgates; em 2021, quase 2 mil, 1.959; em 2022, 2.587; e
agora em 2023, ainda na metade do ano, já temos 1.443 trabalhadores resgatados
da condição de trabalho análogo à de escravo", apontou.
Um
dos casos recentes que teve maior repercussão no paÃs foi o resgate de 207
trabalhadores terceirizados que prestaram serviços para as vinÃcolas Aurora,
Salton e Garibaldi na colheita da safra da uva, em Bento Gonçalves.
Andreia
destacou a baixa punição dos casos. "Entre 2008 e 2019, tivemos apenas 4% dos
acusados condenados pelo crime de trabalho escravo."
Segundo
ela, o direito da propriedade deve ser respeitado desde que cumpra a função
social e não pode ser colocado acima do direito à dignidade do ser humano.
Toda cadeia produtiva deve ser responsabilizada
O
juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), Rodrigo
Trindade, reforçou essa impressão de impunidade. Segundo ele, o tribunal com
mais casos desse tipo no Brasil, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no
Nordeste, inocentou 99,52% dos acusados de submeter pessoas a condições
análogas à escravidão.
Trindade
salientou que o trabalho escravo não configura exceção no Brasil. Ao contrário,
é estruturante e se manifesta de diversas formas, no campo e na cidade,
principalmente por meio do trabalho terceirizado.
O
magistrado considera "uma opção de parte da população" a demora na
regulamentação da Emenda Constitucional 81, de 2014, que instituiu a
expropriação de terras onde haja trabalho escravo. Ele defende que a
regulamentação responsabilize toda a cadeia produtiva, inclusive de quem
contrata serviços terceirizados.
"O
tratamento sério do trabalho escravo, da erradicação do trabalho escravo no
Brasil, deve começar com o afastamento da ideia do ´não era comigo´. O tomador
de serviço do trabalho terceirizado precisa ser responsabilizado. Isso é
essencial em qualquer projeto de lei de expropriação: reconhecer a
responsabilidade da cadeia produtiva", disse.
"Porque
a pessoa que faz a intermediação do trabalho do escravo, nós vimos isso nas
colheitas da uva do Rio Grande do Sul, essa pessoa não tem patrimônio a ser
expropriado", completou Trindade.
Para
o juiz, as empresas onde haja trabalho escravo devem ser impedidas de fazer
contratos e receber subsÃdios da administração pública. Além disso, ele sugeriu
que os casos sejam tratados pelos órgãos especializados, ou seja, a Justiça do
Trabalho e o Ministério Público do Trabalho.
90% dos resgatados são terceirizados
A
coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho, Lys Cardoso, afirmou que
não é possÃvel se falar em erradicação do trabalho escravo no Brasil sem falar
em reforma agrária. Ela defendeu que as terras onde são encontradas formas de
escravidão sejam revertidas para os trabalhadores rurais.
Segundo
a diretora-adjunta do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho
(Sinait), Vera Jatobá, que também defendeu a proposta de regulamentar a
expropriação, "desde 1995, a fiscalização do trabalho já resgatou mais de 60
mil trabalhadores em condição análoga à de escravidão".
A
desembargadora aposentada do TRT-4 e professora da Unicamp, Magda Barros,
reiterou que 90% dos resgatados são terceirizados. "Esse dado evidencia haver
uma linha tênue que separa as formas de escravidão contemporânea e a
terceirização", disse. "A terceirização é uma grave forma de precarização do
trabalho", completou.
Além
disso, ela salientou que 80% dos resgatados são pretos e pardos, o que
evidencia a herança escravista a ser superada.
Mais recursos do orçamento para combate ao trabalho escravo
O
jornalista e doutor em Ciência PolÃtica Leonardo Sakamoto destacou a
importância de se manter o conceito previsto no Código Penal para se
caracterizar a condição análoga à de escravo, que muitas vezes é atacado.
O
conceito inclui a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, a
sujeição a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção do trabalhador.
A pena prevista é de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena
correspondente à violência.
Outros
instrumentos previstos hoje para atacar o problema são indenizações
trabalhistas por dano moral, multas aplicadas pela inspeção, a lista suja do
trabalho escravo, a proibição do crédito rural para quem cometer o crime e o
confisco de propriedade previsto na emenda constitucional de 2014, conhecida
como PEC do Trabalho Escravo.
"Temos
o problema de aplicação de leis e normas, até por conta da falta de
regulamentação da PEC do Trabalho Escravo, temos a falta de auditores fiscais
em número suficiente", enumerou Sakamoto, ressaltando que esse problema
deve ser reduzido com o anúncio de novos concursos.
Além
disso, o jornalista frisou que "temos a necessidade de mais recursos
orçamentários para as instituições que combatem o trabalho escravo, temos uma
necessidade de não interferência polÃtica no combate ao trabalho escravo". Ele
defende uma regulamentação enxuta da Constituição, que estabeleça a responsabilidade
da cadeia produtiva inteira.
Sakamoto
observou ainda que, em situações de crise econômica, a vulnerabilidade para o
trabalho escravo aumenta; por outro lado, com a retomada econômica os resgates
de trabalhadores aumentam.
Para
ele, não é possÃvel dizer com precisão se o trabalho em condições análogas Ã
escravidão tem aumentado ou diminuÃdo no paÃs, sendo possÃvel atestar apenas
quando a fiscalização do trabalho escravo está sendo efetiva.
Bolsonarista se opõe ao conceito de trabalho escravo
O
deputado bolsonarista Helio Lopes (PL-RJ) criticou o conceito de condição
análoga à escravidão contido no projeto, que inclui manter trabalhador em
condição degradante de trabalho, submetê-lo a trabalho forçado e a jornada
exaustiva. Segundo ele, os parlamentares se submetem à jornada exaustiva e os
assessores acompanham essa jornada.
Lopes
acredita que há na proposta tentativa de criminalizar o produtor rural. "Vejo
método para transformar a propriedade privada em bem coletivo de posse do
Estado. Aà não é capitalismo", avaliou. "Não podemos colocar como ameaça para
quem está empregando. Temos que facilitar a vida do empregador", opinou.
Ao
contrário do bolsonarista, a deputada Erika Kokay (PT-DF) apoiou o projeto de
Reginete. Embora ressalte que a PEC do Trabalho Escravo seja
autorregulamentada, ela acredita que o projeto pode ajudar na "grande
trincheira" para implementar e efetivar as medidas.
A
deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS), que também participou da audiência,
afirmou que é preciso mobilizar a sociedade civil para que a proposta de
regulamentação possa avançar.