Agricultura urbana corre riscos com políticas do governo Bolsonaro
O plantio de hortaliças,
legumes, frutas, raízes, temperos e ervas medicinais em chácaras, quintais,
praças, terrenos abandonados e escolas, nas cidades ou bem perto delas, tem
papel cada vez mais importante para a segurança alimentar em todo o mundo. Desses
canteiros, cultivados por mais de 800 milhões de pessoas, saem 20% de todo
alimento produzido no planeta, segundo estudo da organização internacional
Worldwatch Institute (WWI).
Fonte de renda para
milhões de famílias - milhares delas no Brasil - é também alternativa
sustentável de ocupação de espaços vazios nas cidades. O cultivo, geralmente
livre de agrotóxicos e de outros agroquímicos, utiliza resíduos orgânicos
extraídos de grande parte do lixo doméstico produzido nas cidades. E as
sementes, flores e frutos das plantas atraem pássaros e abelhas, contribuindo
para o aumento da biodiversidade local.
A atividade, que pode
ser individual ou coletiva, para consumo próprio ou comercialização,
proporciona o acesso a alimentos frescos, mais saudáveis e com preço mais
baixo, já que a distância entre a produção e o mercado consumidor é bem menor.
Para completar, o engajamento social e político com a aproximação das
comunidades fazem dessa agricultura um espaço solidário e de resistência ao
modelo de agricultura hegemônico.
Dificuldades
Entretanto, diante da
atual conjuntura política e econômica brasileira, com forte presença de
ruralistas no governo, tudo isso deverá enfrentar grandes dificuldades para ter
prosseguimento.
"Com o Legislativo
conservador e a ruralista Tereza Cristina como ministra da Agricultura de
Bolsonaro, não vejo perspectiva de avanço de propostas que respeitem o meio
ambiente, que diminuam custos e democratizem o acesso a alimentos orgânicos.
Não no âmbito federal, onde essas políticas são coordenadas. Ali a perspectiva
é outra, diferente do fortalecimento da agricultura urbana e
agroecológica", avalia o deputado federal federal Nilto Tatto (PT-SP),
relator da proposta de Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara)
aprovada em comissão especial no final do ano passado. O substitutivo está
pronto para ser avaliado pelo plenário da Casa.
Conhecida como
"musa do veneno", a atual ministra Tereza Cristina (DEM-MS) presidiu
a comissão especial que aprovou o substitutivo do deputado federal Luiz
Nishimori (PR-PR) para projetos de lei apensados que na prática revogam a atual
Lei dos Agrotóxicos. Conhecido como Pacote do Veneno, tem o objetivo de
facilitar ainda mais o registro, produção, comercialização, importação e
estocagem para aumentar o uso desses produtos no país, que já é o maior
consumidor mundial.
"A aprovação, mesmo
na comissão, pode ser considerada uma vitória se for levada em consideração a
configuração da Câmara. Por isso, mais do que nunca, a agenda da agricultura
ganha importância fundamental a partir desse período, em que as perspectivas
são ruins para a agricultura brasileira do ponto de vista da qualidade dos
alimentos, do impacto ambiental e até da balança comercial. Porque as ideias
que este governo defende são as das empresas de agronegócio, dos agroquímicos,
e não da sociedade brasileira e mundial. Além do âmbito institucional, essa
pauta tem de continuar mobilizando os movimentos sociais e toda a sociedade.
Afinal, estamos falando do alimento que vai para a mesa de todos nós".
Disputa pela terra
Outra barreira para o
desenvolvimento e ampliação da agricultura urbana é a disputa pela terra e por
espaços, que pode ser agravada, entre outras coisas, pelas mudanças na
regularização fundiária urbana e rural trazidas pela Lei 13.465/2017,
proveniente da MP 759/2016. "Há muita insegurança no uso de áreas
utilizadas", afirma o integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional e do Fórum Catarinense de Combate aos
Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, o agrônomo Marcos José de Abreu.
Mais conhecido como
Marquito, o vereador eleito pelo Psol em Florianópolis já viveu experiências
desse tipo. "Das cinco hortas comunitárias que nós acompanhávamos de 2006
a 2010, três acabaram desmobilizadas por esse motivo. Uma em Biguaçu, outra em
Itajaí e a terceira, em Florianópolis, na área da usina de compostagem da
(chamada) Revolução dos Baldinhos. A de Itajaí era em um loteamento em área de
periferia, que tinha um terreno disponível perto de uma torre de alta tensão. De
um dia para o outro, a área tornou-se privada. Um documento de legalização foi
apresentado e a horta foi desfeita", conta.
A de Biguaçu, segundo
ele, estava em terreno de uma igreja católica. "Articulado com a
prefeitura, surgiu um proprietário que acabou com a horta e desmobilizou todo o
grupo. E a área utilizada na Revolução dos Baldinhos pertencia à Companhia de
Habitação (Cohab). Quando a horta tinha dois anos, sem aviso prévio, a Cohab
passou com com uma máquina sobre os canteiros, levando 60 toneladas só de
composto orgânico", lembra Marquito.
A Revolução dos
Baldinhos a que ele se refere é a gestão comunitária de resíduos orgânicos
articulada à agricultura urbana. Idealizada e implementada com a participação
do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro) na comunidade
Chico Mendes, no bairro Monte Cristo, Florianópolis, consiste na gestão de
resíduos orgânicos e compostagem de toneladas de resíduos que até 2008 ficavam
espalhados pelas ruas da comunidade, aumentando a população de ratos e os casos
de leptospirose. Esses resíduos orgânicos passaram a ser acondicionados em
baldinhos com tampa. A população local teve ganhos nutricionais e se livrou do
lixo e dos roedores.
"A maioria dos
consumidores de produtos agroecológicos são os de maior poder aquisitivo ou com
outra compreensão de mundo. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad ganhou
prêmio internacional justamente pela sua visão sistêmica de agricultura,
alimentação e gestão de resíduos. Incluiu na merenda escolar a obrigatoriedade
de ter pelo menos uma parte preparada com alimentos orgânicos. Foi na escola
que o pobre passou a ter acesso ao alimento agroecológico. Isso é poderoso. E
incomodou a indústria dos alimentos, que aceita a agricultura urbana enquanto
nicho de mercado, para um fatia da população. Mas quando a gente coloca como
garantia de acesso a uma alimentação adequada para todos, a coisa muda de
figura", conta o agrônomo.
Para ele, a agricultura
urbana que permite à população mais pobre o acesso a alimentos de melhor
qualidade é também o caminho para a superação crises. "Cuba conseguiu sair
de uma grande crise de alimentação causada pelo embargo econômico a partir de
uma política de agricultura urbana, produzindo perto das casas. A prática, que
sempre existiu, emerge em tempos difíceis, como no pós guerra na Europa. A
cidade norte-americana de Detroit, que foi capital da indústria automotiva,
hoje é grande referência de agricultura urbana e ocupações. Pouco se fala a
respeito, mas é a saída para nossa sobrevivência".
Regulamentação
Em novembro, a Comissão
de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara aprovou o Projeto de Lei
(PL) 906/15, de autoria do deputado Padre João (PT-MG), que cria a Política
Nacional de Agricultura Urbana e estabelece ações que devem ser empreendidas
pelo governo federal em articulação com estados e municípios.
A proposta define a
agricultura urbana como a atividade agrícola e pecuária praticada nos limites
da cidade e integrada ao sistema ecológico e econômico urbano, para produção de
alimentos e de outros bens para consumo próprio ou para a comercialização em
pequena escala. Como tramita em caráter conclusivo, segue para o Senado sem ter
de ser submetido ao plenário da Câmara.
Na Comissão de
Agricultura e Reforma Agrária do Senado está em discussão projeto do senador
Eduardo Braga (MDB-AM), que regulamenta a produção orgânica de alimentos,
plantas ornamentais e medicinais em terrenos urbanos desocupados de propriedade
de particulares ou da União (PLS 353/2017). Aprovada na Comissão de Meio Ambiente,
a proposta visa ainda permitir ao agricultor urbano acesso ao Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com taxas de juros
reduzidas, de até 2,5% ao ano, bem como ao Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA) e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
"Toda legislação
que trata de agricultura considera o produtor pertencente a áreas rurais. No
entanto, com a expansão das cidades, alguns estão em áreas periurbanas. Com
essa proposta podem vir a ser incluídos em programas de fomento também. Esse é
um eixo. Outra possibilidade é reconhecer espaços urbanos vazios, abandonados,
como espaço para cultivos de alimentos e estabelecimento de hortas coletivas e
comunitárias", opina sobre o PLS a antropóloga Mônica Birchler Vanzella
Meira, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Gestão Alternativa da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Membro do coletivo A
Cidade Que Queremos (CCQQ) e dos Hortelões Urbanos, a ativista é voluntária em
hortas urbanas comunitárias, como a Horta da Lomba do Pinheiro, do Centro
Lupicínio Rodrigues, em Porto Alegre, ela conta que o governo gaúcho aprovou em
agosto passado uma lei semelhante.
"Há de se tomar
cuidado com a legislação para que um ´projeto de horta´ não seja justificativa
para impedir o uso social do imóvel. No caso da população em geral, penso que a
promoção de canteiros e hortas urbanas pode despertar o interesse em relação à
produção de orgânicos e incentivar a proximidade com os agricultores, reduzindo
a relação de intermediários nessa cadeia. Há muitos benefícios que a prática do
cultivo pode trazer para aqueles que se interessam pelas hortas
comunitárias."
Mônica observa que o
projeto de lei deve estar articulado com os municípios quanto ao uso do solo.
Ou seja, deve estar contemplado nos respectivos planos diretores, já que são os
estados e municípios legislam sobre a ocupação do solo. E que a permissão para
a criação de pequenos animais em áreas urbanas pode ser barrado, com razão,
pela Vigilância Sanitária municipal.
"O uso de
agrotóxicos nas áreas urbanas e periurbanas também merece atenção. Alguns
defensivos, que embora sejam aprovados para uso na agricultura orgânica, são
danosos e tóxicos para polinizadores. Mas a proposta, apesar de só falar em
área urbana, ajuda muito aqueles produtores que, por uma razão ou outra ficaram
estabelecidos nessa franja entre a área urbana e a rural e tem problemas em
relação ao cadastro de produtor e, consequentemente, acesso aos programas de
fomento."
Outros pontos positivos,
segundo ela, são a promoção do uso de áreas urbanas abandonadas para cultivo e
o acesso à assessoria técnica, que ajuda muito iniciativas populares e
comunitárias em torno de uma horta que cada vez mais atrai o interesse da
população em geral.
Fonte: CUT